Fernanda Ribeiro: "Não fui a Pequim porque o Comité não me levou. Tenho essa mágoa"
Criada há um ano, o dinheiro dos que pagam inscrição é para os técnicos com quem Fernanda Ribeiro trabalha. Juntam-se ao grupo os veteranos e, entre uns e outros, a campeã vai treinando, sem as dores que a fizeram desistir tantas vezes na última década da carreira, que acabou em 2012. Espera voltar à competição no campeonato dos veteranos, mas apenas se se sentir bem preparada. Chega à pista de tartan do complexo desportivo da Maia equipada a rigor pela Adidas, a quem agradece o apoio mesmo depois de estar retirada. Mantém a figura e a imagem dos últimos tempos de glória. Cabelo castanho claro, mas que amanhã pode ser preto ou louro, sabe que as suas mudanças visuais foram tema de conversa. Não importa, gosta de mudar. Pela enésima vez, vê o final dos 10 000 m dos Jogos Olímpicos de Atlanta, maravilha da tecnologia que lhe lembra esse momento como se fosse hoje: a vitória nos últimos metros, depois de tantos prémios como iniciada e júnior e que tardavam em sénior. Começou a competir aos 9 anos e a representar o país aos 13. Somou 28 anos com a camisola de Portugal, muitas alegrias - também tristezas - e 12 medalhas internacionais que fazem dela a atleta portuguesa mais medalhada. Ouro e prata em Jogos Olímpicos, cinco medalhas em campeonatos mundiais (uma de ouro) e outras tantas em europeus (três de ouro). Falta-lhe o recorde de seis participações nos jogos olímpicos que ainda ninguém alcançou. Esteve lá, mas não como atleta, o que considera a maior injustiça da sua carreira. Nasceu em Penafiel há 46 anos, a penúltima de uma família de sete irmãos. Tem 13 sobrinhos.
Quando começou, perguntaram-lhe se ia ser a nova Rosa Mota ou Aurora Cunha. Respondeu que queria ser melhor. E conseguiu.
Não gosto de dizer que sou melhor do que elas, isso tem que ver com o que as pessoas acham. Se for por medalhas, sim, sou a atleta mais medalhada. No atletismo, sim. E nas outras modalidades também, a não ser nos Paralímpicos.
Sente que tem o reconhecimento merecido a nível nacional?
Não. Muitas vezes, as pessoas até se esquecem, admiram-se. De há uns tempos para cá é que começou a falar-se mais que eu era a atleta mais medalhada. Antes não se falava e nunca tive essa preocupação.
Porque é que acha que isso acontece? É por ser uma atleta de fundo, da sua personalidade?
Se calhar a culpa foi minha, mas muitas vezes digo que aquilo que ganhei ninguém me vai tirar. Não sou dos que gostam de aparecer, dizem-me que eu sou um bocado esquecida por ser assim. Podem esquecer-me mas eu nunca me esqueço daquilo que fiz e ganhei.
No entanto, esta nova geração de atletas refere muitas vezes que a Fernanda foi uma inspiração.
Porque foram elas que me apanharam. Como eu, quando comecei, apanhei a Aurora Cunha e a Rosa Mota e me perguntavam se queria ser como elas. Na altura em que eu fui campeã olímpica elas estavam a começar o atletismo e por isso, se calhar, têm essa admiração.
E quem inspirou a Fernanda?
Comecei a correr por mim, porque o meu pai me perguntou se queria correr. Convivi tanto com a Aurora Cunha como com a Rosa Mota. Estive com a Aurora no Futebol Clube do Porto. Mas sempre quis ser eu. Comecei com 9 anos e já tinha essa ideia. Claro que adorava quando encontrava a Rosa Mota ou a Aurora Cunha, como a Albertina Machado, a Conceição Ferreira. Tinha uma grande admiração por elas, mas corria por mim. Talvez porque comecei logo a ganhar. Na primeira prova, em Setúbal, fui segunda, e depois tive várias vitórias.
Ainda por cima não tinha qualquer experiência.
Mas gostava da competição. Por exemplo, nunca gostei de correr com atletas da minha idade e por isso é que toda a gente fala da meia-maratona em que a Rosa Mota ficou em primeiro e eu em segundo. Tive problemas porque ia às competições das mais velhas. Fui desclassificada porque era impossível uma miúda de 9 ou 10 anos ganhar a atletas de 20 e tal. Mas foi assim que fui habituada a lutar.
Era esse o espírito em sua casa?
Não era por isso. Eu adorava correr. A corrida de infantis eram 1000 metros e a minha alegria era correr 10 ou 12 km. Também porque não havia um atletismo tão equilibrado como agora. Quase todas as freguesias tinham uma corrida aos domingos e aos sábados. Eu corria, e mesmo hoje corro, pelo prazer.
Mas diz que não gostava de treinar, gostava era da competição.
Adoro a competição. O que mais gostava era do tiro de partida. Gosto de treinar se tiver companhia. Quando era atleta, aquilo que gostava era que nenhuma treinasse e chegássemos à competição e cada qual corresse o mais que pudesse.
Aí só dependiam das aptidões físicas.
Sim. E sempre gostei de correr com pessoas mais velhas. Neste momento, corro com pessoas mais velhas e adoro. Sou feliz a correr. É o treino deles, é o meu. Vou com mais velhos, vou com mais novos.
Pessoas que competem nos veteranos? É um dos seus sonhos?
É um dos meus objetivos. Ouço falar tanto nos Campeonatos da Europa e nos Campeonatos do Mundo de Veteranos que quero ver como é, mas tenho de sentir-me preparada. Neste momento, eu não tenho objetivos - enquanto o grupo que treina comigo vai a uma meia-maratona e quer tirar um segundo ou dois ao seu tempo.
Precisa sempre de um objetivo para entrar numa competição?
Sim. Digo isso no meu grupo de treino e dizia enquanto atleta. Há muita gente que diz: "Vou a uma competição para treinar." Não há competições a treinar.
Podia participar numa prova mais curta para se treinar para uma prova de fundo.
Isso é diferente. Faço 400 m, 800 m ou 1500 m como preparação para a minha prova, mas vou dar o máximo, na mesma. Posso perder porque as outras são mais rápidas, não perdi porque ia a treinar. Tem também que ver com o respeito pelo adversário e essa é uma das coisas que nunca vou esquecer na minha carreira. Mesmo quando sabia que o meu nível era mais forte do que o da minha adversária, dizia ao meu treinador: "Tenho de dar o máximo, pode acontecer-me alguma e aquela atleta ganha-me." E ele ria-se.
Quando chegou à fase adulta teve de treinar mais a sério.
Tive de treinar mais a sério. Foi muito complicado porque fui uma atleta muito boa como infantil, como iniciada (o recorde de 1500 m de iniciada ainda é meu) e como júnior. Em sénior, as pessoas exigiam grandes resultados e eu não conseguia. Aquilo que mais ouvia e que, se calhar, me prejudicou, era que tinha acabado porque tinha treinado muito. Eu sabia que era mentira, nunca fui doente pelo treino. Fui aos Jogos Olímpicos em 1988, ainda era júnior, depois fui em 1992, onde não era candidata a nada - os candidatos eram a Rosa Mota e os Castros. Esses jogos correram mal a toda a gente e os atletas que foram mais atacados, até pelo presidente da Federação, foram a Teresa Machado, do peso, e eu. Afetou-me muito. Disse: "Acabei a minha carreira. Não faço mais atletismo."
Acabou a carreira muitas vezes.
Muitas. As pessoas estão habituadas a ver-nos ganhar e quando não ganhamos custa muito ouvir: "Ah, já acabou! Não vale nada."
É particularmente sensível ao que os outros dizem?
Afetava-me. O que eu mais gostava era de representar bem o país, mesmo quando ia fazer um meeting. Comecei a representar o meu país com 13 anos (no Campeonato da Europa de Juniores, na Áustria) e deixei de o representar com 41. Quando ganhava vinha muito contente, mas quando perdia ou desistia, sentia-me envergonhada por ter falhado. Nessas viagens apanhamos aquelas pessoas que nos dizem "para a próxima é melhor", mas também há quem diga: "Vieram gastar o dinheiro do contribuinte."
Ia-se abaixo psicologicamente?
Sim. Mas tão depressa desanimava como aparecia alguém que me ajudava a levantar e dizia: "Vais atirar a toalha ao chão?" Lembro-me perfeitamente de que fomos recebidos num hotel quando chegámos dos Jogos Olímpicos de 1992 e eu disse ao presidente da Federação: "Vou mostrar-lhe que sou atleta." Ele respondeu: "É o que eu quero." Mas acho que não acreditou. Em 1993, fiz os mínimos para o Campeonato do Mundo e foi quando apareceram as chinesas a bater os recordes mundiais. Eu fui 10.ª e em 1994 bati o recorde nacional de 3000 m e o meu treinador decidiu que eu ia aos 10 000 m, ao Campeonato da Europa. Era uma grande responsabilidade. E fui campeã da Europa com uns 200 metros de avanço - bati o recorde nacional.
E quando é que ganhou um Mercedes, ainda não tinha carta?
Foi em Gotemburgo, nos campeonatos mundiais, em 1995. A candidata aos 10 000 era a [Derartu] Tulu, a campeã olímpica de 1992. Nos últimos 300 metros disputámos a ponta final e ganhei. Nessa semana, fui campeã do mundo dos 10 000 e nem tive tempo de festejar porque no dia seguinte de manhã tinha a eliminatória dos 5000. No outro dia fiz nova eliminatória e no seguinte fui à final. Perdi com a (Sonia) O"Sullivan, na ponta final também. Ganhei ouro e prata.
O que é que fez ao Mercedes?
Ainda o tenho. Tem poucos quilómetros - é um carro que não gosto de conduzir porque é grande. É engraçado. Ganhei outros carros e consegui vendê-los e aquele não.
As coisas melhoraram no atletismo, desde o seu tempo?
As coisas vão melhorando. Se calhar, no tempo da Rosa Mota era mais complicado e no meu tempo já foi melhor. Por exemplo, nunca fiz treino de altitude, não sei o que é ter uma tenda de altitude, agora quase todos os atletas a têm.
Mas a competição internacional também está mais forte ou não?
Não sei. Muitas vezes as nossas atletas dizem: "Nesse tempo não havia as atletas negras." Havia. Quando fui primeira nos Jogos Olímpicos, a segunda foi uma chinesa, a terceira da Etiópia, a quarta foi a Tulu, que era campeã olímpica. E tínhamos mais europeias do que agora.
Os dez anos finais da sua carreira devem ter sido muito difíceis, desistiu muitas vezes em prova.
O ano de 1999 foi horrível, o pior em toda a minha vida. Preparei-me e, para aí duas voltas depois (no Campeonato Mundial de Atletismo, em Sevilha), já não conseguia correr. Quando se consegue explicar as razões é mais fácil; eu nunca consegui explicar. Mas ganhei medalhas em 1994, 1995, 1996, 1997, 1998, não ganhei em 1999, ganhei em 2000. Pronto!
Refiro-me à última década da carreira, entre 2001 e 2011.
Em 2001 estive lesionada, nem fui ao Mundial. Em 2002 tive um problema e nunca descobrimos porquê: alguma coisa que comi que me afetou os intestinos. E tive esse problema até depois de acabar a carreira. Depois foram os tendões. No último ano, já não estava a fazer atletismo. O Rui Pedro Silva ia treinar para a maratona e disse-lhe: "Ajudo--te naquilo que puder." Foi assim que fui ao Campeonato da Europa (em 2010, a maratona), com aqueles treinos fiz mínimos. Foi a última competição, porque fiz uma rutura.
Não se arrepende de não ter ido para o estrangeiro? Esteve no Valência Terra/Mar, mas a viver em Portugal. Podia ter tido melhores condições de treino.
Não. Não conseguia sair do país. Dou muito valor à minha bandeira, ao meu hino, só se fosse por uma necessidade muito grande.
Teve as condições que merecia?
Tive as que me puderam dar.
Hoje teria feito alguma coisa diferente?
Não. Tive um convite para ir para os Estados Unidos quando tinha 13 ou 14 anos mas não quis deixar a minha família. Não estou arrependida. Muitas vezes dizem: "Fizeste muitos sacrifícios. Mudavas alguma coisa?" Não. Nunca senti falta da noite, nunca deixei de comer o que me apetecia, nunca deixei de estar com os meus amigos...
Nos momentos mais difíceis, não sentiu necessidade de ter um psicólogo na equipa para a motivar?
Nunca precisei. Muitas vezes sentia-me envergonhada, sentia que tinha falhado com as pessoas de quem gostava. Mas passados uns tempos também me conseguia levantar. Era uma atleta que, muitas vezes, dava força ao treinador. Nos Jogos Olímpicos de Atlanta, íamos no autocarro e o meu treinador ia tão nervoso que vomitava, fazia não sei quê e eu só lhe dizia: "Professor! O que está feito, está feito." Eu estava descontraída: pus o número à Tegla Loroupe (fundista queniana) estive com a italiana...
Como é que conseguia descontrair? Tinha algum ritual?
Nada. Em 2000 estive para me vir embora dos Jogos Olímpicos (Sydney) e não competir porque 1999 tinha corrido tão mal que fiquei com receio da competição. Em vez de ir aos meetings no estrangeiro, fazia competições em Portugal com os meus colegas homens. E já em Sydney achei que tudo estava a correr mal, fiquei constipada, num treino comecei a deitar sangue do nariz. O meu treinador chegou à minha beira e disse-me: "Não queres correr, pois não? Vamos fazer uma conferência de imprensa, dizer que não vais competir. Mas tal como tu estás com medo das adversárias, elas estão com medo de ti. Vais deitar uma medalha fora?" Eu estava com a Manuela Machado, a Ana Dias, e perguntava-lhes: "Vale a pena levar o fato de treino da cerimónia?" Elas respondiam: "Sabes que vai ser complicado". E eu: "Pronto. Não levo!" Elas chegaram a dizer-me: "Se ganhares uma medalha, vimos buscar o fato de treino à aldeia."
E foi isso que aconteceu.
Fiz a meia-final e senti-me muito bem. Mesmo na final já tinha mais confiança mas fazia muitas perguntas. E não levei o fato de cerimónia. Quando estava na zona de aquecimento, para onde vamos hora e meia antes da prova, sentia que conseguia vencer as adversárias pela minha maneira de estar. Começámos a prova e passámos os 5000 m a 15"09" e eu disse: "Ei, meu Deus, que vamos morrer!" Era a Radcliffe que puxava. Mas disse: "Se vou morrer, estas também." Pensava muito rápido. Ganhei a medalha de bronze e tenho dúvidas se não podia ter ganho a medalha de ouro. Mas a de prata perdi-a por mim, por ser burra, por medo.
Não arriscou.
Houve uma altura que o meu treinador me disse, para aí aos 7000 m: "Sai." Saí e ganhei terreno à Tulu. Mas tão depressa o fiz como pensei: "É melhor ficar aqui, ganhar uma de bronze do que não ganhar nada." Quando a Tulu saiu e a (Gete) Wami, as duas da Etiópia, deixei-as ir. Na reta da meta acelero e fico muito em cima da segunda.
Fica essa dúvida.
Mas eu estava tão contente. Aquela medalha era ouro, porque não estava a contar com nada. E tiveram de ir buscar o fato de treino.
E depois ainda foi a Atenas. Foi a cinco Jogos Olímpicos.
Fui a Atenas. E não fui a Pequim, em 2008, porque o Comité Olímpico não me levou.
Ainda tem essa mágoa?
Tenho. Nunca descobri se a culpa foi da Federação ou do Comité.
Mas tinha mínimos olímpicos?
Existe um mínimo nacional e um mínimo internacional e eu tinha, à vontade, o mínimo internacional. Fico triste porque era um recorde que se ia bater, o meu país não tinha ninguém nos 10 000 m e o Comité Olímpico convidou-me para ir na delegação portuguesa. Gastava menos em me levar como atleta, pois eu ia para a aldeia olímpica e assim fui para um hotel. Estava lá a espanhola a quem tinha ganho com 50 m de distância nesse ano. Tinha feito 32"07", tinha de fazer 32"00" (mínimos nacionais) e ela fez 32"20".
Não pediu explicações?
Um dia era uma decisão da Federação de Atletismo, outro era do Comité Olímpico, nunca percebi. Aceitava se não tivesse ido a Pequim, se fosse uma questão de dinheiro. E eram os meus sextos jogos olímpicos, o que ninguém tinha (nem tem). Disseram que eram as regras. Mas nos jogos a seguir vi atletas sem mínimos e que não tinham a minha história.
Sente-se injustiçada?
Nesta competição, sim. Nunca me vou esquecer. Nunca.
Quando é que teve exata noção de que a carreira tinha acabado? Em 2012 ainda corre em Paranhos.
Sou uma atleta muito esquisita. Na minha última competição, em Barcelona, lesionei-me e vim de muletas para Portugal. Passados 17 dias, fizeram-me uma ecografia, porque tenho problemas gravíssimos de tendões, e continuei a treinar apesar das dores, fazendo fisioterapia. Devo ter começado a pousar mal o pé e fiz uma rutura. Tinha a sensação de ter um dedo partido. Fiz ressonâncias que acusavam uma inflamação mas nunca resolveram a situação. Até que o Nuno Delgado me convidou para ser madrinha de uma corrida em Cabo Verde. Tinha muitas, muitas dores e, mesmo assim, fiz 2 km e ganhei. Foi a última corrida, em 2012. Antes tinha ganho a Volta a Paranhos.
Entrar na maratona e ter de desistir é do que mais se arrepende na carreira?
Não. Eu sempre disse que gostava de fazer uma maratona. E estou contente por o ter feito, mas não era das competições mais adequadas para mim, pelas lesões, pela maneira de correr e porque nunca fui doente pelo treino. Quem faz maratona tem de ter o prazer de correr montes de quilómetros.
Tem contactos com alguma atleta estrangeira?
Não, mas ficou uma ligação, tanto com a Szabo como com a Tulu. Eu e a Tulu éramos candidatas ao pódio e lembro-me perfeitamente de que ela chamava por mim durante a competição. Quando fui medalha de bronze, em Sydney, o treinador da Szabo dizia que se alguém merecia ganhar uma medalha era eu.
Ganhou muito dinheiro?
Tudo o que tenho foi ganho com o atletismo. Comecei a ganhar mais depois de ser campeã do mundo. E também perdi muito dinheiro por ser correta. Havia atletas que faziam meetings à segunda, quarta e sexta. Eu podia fazer isso, mas se fizesse 10 000 na segunda e 5000 na quarta não estava em condições de dar o meu melhor na competição.
Abriu a Academia Fernanda Ribeiro, na Maia, no ano passado.
Não ganho dinheiro na academia.
Não? Qual é a sua profissão, a sua fonte de rendimentos?
Não faço nada. Continuo a ir às escolas, a fazer as coisas que me pedem, mas não ganho nada do governo. Houve um acordo, a partir de 1993, para quem tivesse 12 anos de alta competição ter direito a 50 mil euros para recomeçar a sua vida [seguro]. Uns recebiam, outros não, depois de 50 mil passou para 30 mil ou 33 mil. É isso que me estão a pagar em prestações.
Não existe um apoio, uma espécie de reforma, após a carreira?
Não. Há atletas que estão num projeto e que recebem um apoio. Não sou contra, mas o que digo é que tem de haver regras. Eu não tenho de pedir nada. Existem atletas que não têm o mesmo nível que eu, que não ganharam as medalhas que ganhei e estão nesse projeto.
Como é que vive?
Vivo daquilo que ganhei como atleta. E comprei casas, mas neste momento não estão arrendadas.
Há grande diferença de imagem da Fernanda no início e agora.
Fui mudando. Também porque, se calhar, comecei a ter mais dinheiro, a poder investir mais em mim. E hoje, gosto de mudar.
A sua transformação visual era comentada?
Ah sim, sim, sim. Uma das coisas de que me lembro é que, quando foram os Jogos Olímpicos, falaram muito porque tinha as unhas pintadas de vermelho, o que não era normal.
Quando a veremos numa competição de veteranos?
Já era para ter ido, se não estivesse doente. Tive uma pneumonia viral, estive quatro meses em casa. O objetivo é um Campeonato da Europa, mas tenho de dizer que treinei para estar num Campeonato da Europa - posso chegar lá e perder mas tenho de sentir que treinei para competir.
"Ouvir dizer que a minha carreira acabara fez-me ir abaixo"
Os 10 000 metros nos Olímpicos de Atlanta, 1996, foram memoráveis. A atleta chinesa Wang Junxia foi sempre à frente e na ponta final, a Fernanda venceu.
Quando ela foi embora, achei que ela ia ganhar. Só que olho para trás e vejo que a terceira já não vem. E eu tinha sofrido tanto nesse ano - tive a carreira como terminada em abril, chorei muito nos treinos - que pensei: "Há duas hipóteses: fico em segundo ou ganho. Não tenho nada a perder." Apanho-a e ela não reage, começo a ganhar terreno e confiança. Via, até pelo ecrã, a cara de sofrimento dela.
Controlava a esse ponto?
Sempre. Controlava as corridas pelo ecrã e a tática pelo meu treinador. Começo a ver que estou a ganhar terreno, ela nem se apercebe; acho que quando começou a ouvir o público a gritar pensou que era por ir ganhar.
Falou com ela depois?
Não, nunca mais a vi.
Ela desistiu aos 23 anos. Tinha ganho os 5000 metros nesses Jogos Olímpicos.
Desapareceu. Apareceu em 1993, o recorde do mundo de 10 000 metros ainda é dela. Tinha preparado muito bem os Jogos Olímpicos - eu só fiz um estágio em Manaus.
É a sua melhor vitória?
É. Tinha ganho o Mundial em 1995, na ponta final, mas foi diferente. Saí com a (Derartu) Tulu aos 300 metros e vamos as duas juntas.
Em Atlanta a Fernanda acreditou sempre que podia ganhar.
É verdade mas ela mais ou menos na curva final ganha terreno. Eu controlo pelo ecrã e desanimo. Ao entrar nos 100 metros finais subimos o ritmo. Acelero e ela dá a parte de dentro - não é normal. Ao passar já imaginava que ia ganhar mas não sabia como ela reagiria. Só fiquei feliz depois de cortar o risco.
E foi recorde olímpico.
A última volta foi muito esquisita. Ela ir embora, eu já esperar ser segunda e de um momento para o outro passar-me pela cabeça que podia ganhar. Em 400 metros normalmente não acontece tanta coisa na cabeça de um atleta. E quando passo faltam 50 metros. Nem me apercebi que passei por dentro, se ela quisesse dar um toque e deitar-me ao chão a culpa era minha.
Quando é que festejou verdadeiramente essa vitória?
Estavam lá portugueses, a quem fui buscar a bandeira. Fui dar a volta de honra e, passado um bocado, tinha dores nos tendões de Aquiles. Pegaram em mim para ir para a RTP. Festejar mesmo, com as pessoas que queria, só à uma da manhã. E a prova foi de manhã.
Mas em abril desse ano pensou que a carreira tinha acabado?
Fiz estágio em Manaus porque Atlanta tinha muita humidade e calor, e tive problemas nos tendões de Aquiles. Não acabei o último ou penúltimo treino por causa das dores. Estava a chorar e o médico disse: "Acabaste a carreira."
Como é que recuperou?
Vim do Brasil e chorei a viagem quase toda. Os meus médicos e fisioterapeutas foram impecáveis - um está na seleção de futebol, o Dr. Paulo Becker. E tive um fisioterapeuta, o Sobral, que me viu tão desiludida que dizia: "Tu não vais acabar. Se for preciso vou contigo para o Norte para te tratar." Tinha sido campeã do mundo em 1995, feito muitos sacrifícios, em Manaus habituei-me bem à humidade e ao calor e depois ouvir dizer que acabara a carreira e fui-me abaixo. O massagista do Futebol Clube do Porto, Rodolfo Moura, dizia que eu conseguia lutar por uma medalha. Recomecei o tratamento, todos os dias. Nos Jogos, saía muitas vezes do departamento médico à meia-noite. Fui-me adaptando, esquecendo a competição.